segunda-feira, maio 29, 2006

FERNANDO PESSOA

A criança que fui chora na estrada

A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a ali quando vi ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.

Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou
A vinda tem a regressão errada.
Já não sei de onde vim nem onde estou.
De o não saber, minha alma está parada.

Se ao menos atingir neste lugar
Um alto monte, de onde possa enfim
O que esqueci, olhando-o, relembrar,

Na ausência, ao menos, saberei de mim,
E, ao ver-me tal qual fui ao longe, achar
Em mim um pouco de quando era assim.


22-9-1933


Autopsicografia

O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.


28-2-1929

sábado, maio 27, 2006

O EMIGRANTE

O EMIGRANTE

Corpo sem alma levas, emigrante
Que duras lutas na separação!
Que não há-de doer ao coração
Ficar, do peito que ra seu, distante!

Alguns sacos de roupa (rude instante!)
Magro pecúlio a retenir na mão
Que treme... Nó te prende ao rijo chão
Onde o amor te fica soluçante...

Sorria-te a fortuna muito embora,
Teu melhor oiro perdes nessa hora,
Em paga da aventura ou da ambição,

Que nada vale o corpo que levaste,
Se, para sempre, dele lhe arrancaste,
Para o deixar na pátria – o coração!

Correio do Ribatejo 27/8/1999 pag. 8
Maria Antoniete Fernandes.

quinta-feira, maio 25, 2006

QUERO VIVER


Quero viver aqui, bem perto deste lago,
Grande qual oceano!... e bem juntinho a ti,
De todos escondido receber o afago
Da luz desses teus olhos como outros não vi!

À noite ouvir teu canto em nota que me enleia,
Alegre, chilreante, ou toda compaixão...
E junto ao grande lago _ à luz da lua cheia _
Teus lábios murmurarem do amor a canção!

E, se a brincar recusas ternos beijos meus,
Fico triste e amuado e meigamente os teus
Lábios me dizem logo nuns gentis gracejos:

«Se a vaga beija a areia sem sentir fadiga,
Eu quero ser a areia e tu a vaga amiga...»
_ E nossos lábios loucos confundem-se em beijos!...

Anónimo

O FUNCIONARIO CANSADO


O Funcionário Cansado

A noite trocou-me os sonhos e as mãos
dispersou-me os amigos
tenho o coração confundido e a rua é estreita
estreita em cada passo
as casas engolem-nos
sumimo-nos
estou num quarto só num quarto só
com os sonhos trocados
com toda a vida às avessas a arder num quarto só

Sou um funcionário apagado
um funcionário triste
a minha alma não acompanha a minha mão
Débito e Crédito Débito e Crédito
a minha alma não dança com os números
tento escondê-la envergonhado
o chefe apanhou-me com o olho lírico na gaiola do quintal em frente
e debitou-me na minha conta de empregado
Sou um funcionário cansado dum dia exemplar
Porque não me sinto orgulhoso de ter cumprido o meu dever?
Porque me sinto irremediavelmente perdido no meu cansaço?

Soletro velhas palavras generosas
Flor rapariga amigo menino
irmão beijo namorada
mãe estrela música

São as palavras cruzadas do meu sonho
palavras soterradas na prisão da minha vida
isto todas as noites do mundo uma noite só comprida
num quarto só

António Ramos Rosa

terça-feira, maio 23, 2006

TARDE

TARDE

Vi-te, e fiquei pensando na ventura
de quem um dia te há-de desposar,
e na horrível e trágica tortura
de quem te vê sem te poder amar.

Quando, ao vir da manhã, sais e te perdes
da aldeia pelos humidos caminhos,
á luz que brota dos teus olhos verdes
emudecem, de encanto, os passarinhos.

De quem herdaste o busto de Rainha?
Quem sabe se seria tua mãe
aquela meiga e pálida Joaninha
do Vale de Santarém.

Para que foi que te encontrei na estrada
da minha vida tortuosa e má?
Desponta para ti a madrugada,
e eu vejo o poente no horizonte já !

E nem calculas a amargura infinda
que me avassala o intimo do ser,
ao ver que te encontrei, oh Sempre-Linda,
cedo de mais p'ara não te amar ainda,
tarde de mais p'ara t'o poder dizer !

Campos Monteiro

segunda-feira, maio 22, 2006

O BEIJO


O BEIJO

Beijo na face,
Pede-se e dá-se:
Dá?
Que custa um beijo?
Não tenha pejo:
Vá !

Um beijo é culpa,
Que se desculpa:
Dá?
A borboleta
Beija a violeta:
Vá !

Um beijo é graça,
Que a mais não passa:
Dá?
Teme que a tente?
É inocente...
Vá !

Guardo segredo,
Não tenha medo:
Vê?
Dê-me um beijinho,
Dê de mansinho,
Dê !

Como ele é doce !
Como ele trouxe,
Flor,
Paz a meu seio !
Saciar-me veio,
Amor !

Saciar-me? Louco...
Um é tão pouco,
Flor !
Deixa, concede
Que eu mate a sede,
Amor !

Talvez te leve
O vento em breve,
Flor !
A vida foge,
A vida é hoje,
Amor !

Guardo segredo,
Não tenhas medo
Pois !
Um mais na face,
E a mais não passe !
Dois...

Oh ! dois? piedade !
Coisas tão boas...
Vês ?
Quantas pessoas
Tem a Trindade?
Três !

Três é a conta
Certinha e justa...
Vês?
E que te custa?
Não sejas tonta !
Três !

Três, sim: não cuides
Que te desgraças:
Vês?
Três são as Graças,
Três as Virtudes;
Três.

As folhas santas
Que o lírio fecham,
Vês?
E não o deixam
Manchar, são... quantas?
Três
!

João de Deus
1830-1896

PENSAR É PÔR PROBLEMAS

O vosso tanque
general
É um carro forte.

Derruba uma floresta, esmaga cem homens.
Mas tem um defeito
_Precisa de um motorista.

O bombardeiro, general
O vosso bombardeiro, general
É poderoso:
Voa mais depressa que a tempestade.
Mas tem um defeito
_Precisa de um piloto.

O homem, meu general, é muito util,
Sabe voar e sabe matar.

Mas tem um defeito:
_Sabe pensar.


Bertolt Brecht

domingo, maio 21, 2006

NAVIO PERDIDO

NAVIO PERDIDO

Para António Colaço

Porque é que o meu navio se fez ao mar,
sem que eu tivesse tempo de partir...?
...E, sozinho no cais, fui, a chorar,
olhando as velas brancas a sorrir...

...A sorrir como esperanças a afastar
seu rumo deste porto de afligir
em que eu fiquei? Por que razão o mar
me roubou deste modo o sonho? Hei-de ir

ainda procurar o barco à vela
que o meu ideal criou, alevantado,
e me deixou no porto abandonado...

...Hei-de ir... Hei-de ir... No dia em que a procela
arrebatar meu corpo já tornado
pedra nua de um cais desmantelado...

José Prudêncio

sábado, maio 20, 2006

QUANDO EU...


Quando eu era rapaz, fiz muita asneira:
sopeiras não deixei nunca em sossego,
sobre um sendeiro, qual Heroi Manchego,
proezas pratiquei, em uma feira.

Passei vida patusca e galhofeira,
em farsas fiz de dama e de labrego,
dentro d'um cesto, às costas d'um galego,
as ruas percorri, por brincadeira.

Mas versos nunca fiz ! essa loucura
deixei eu reservada p'ra velhice,
ai ! se antes não baixasse à sepultura,

por saber, bem ao certo o que alguem disse :
que, no mundo uma velha criatura
tem que exibir segunda meninice

Dr. Ayres Baptista Pinto

sexta-feira, maio 19, 2006

É TRISTE...

É triste, quando ruge o vento irado,
Ver dos astros sumir-se a luz formosa,
E do arbusto, que ostenta a linda rosa,
Ver o tronco mimoso ao chão curvado.

È triste ver o mar, que sossegado
Ostentava a luzir face lustrosa,
Erguêr-se, e à praia, em vaga furiosa,
O barquinho arrojar despedaçado.

É triste a escuridão, com seus horrores,
Quando, à furtiva luz, sombras errantes
Negros fantasmas são, aterradores.

Mas... dizem-me tormentos incessantes
Que é mais triste por ti morrer de amores,
Sem ter do teu amor vivido instantes
.

Faustino Xavier de Novaes

quarta-feira, maio 17, 2006

HUMÍLIMA

Humilima

Os meus versos singelos que juntei
para dar-vos um ramo pobrezinho,
são flores campesinas que encontrei
humildes, debruçadas no caminho.

Na serra agreste, rude, me criei,
minha alma perfumei-a a rosmaninho;
enchem-me de oiro as giestas que apanhei,
tenho música e irmãos em cada ninho.

Vivo com o desprezo de quem lida
a esforçar-se, tornando amarga a vida,
pensando só naquilo que não tem...

Humílima, de mato rodeada,
vou vivendo e cantando descuidada
sem pretensões de vir a ser alguém...


Isaura Matias de Andrade

segunda-feira, maio 15, 2006

TU ÉS...


Tu és doce pomba imaculada,
a estrela sedutora que fulgura
Pelo campo da aspérrima jornada
Da minha vida cheia de amargura.

À tarde quando a aragem sossegada
De leve sopra a rórida verdura,
eu penso em ti, ó flor idolatrada
e fico imerso em hórrida tristura.

Em vão procuro a paz por toda a parte:
O pensamento negro de deixar-te
Vai me ceifando a vida pouco a pouco !

Ah ! eu penso no adeus da despedida,
No derradeiro instante da partida,
E sem alívio choro como um louco.

Anónimo

domingo, maio 14, 2006

ERA UM...


"A Ernesto Nazareth"

Era um pomar saudoso e transparente
A hora, a da Saudade ! Anoitecia.
Mas noite inda não era... inda era dia
nesse templo de aromas, recendente.

Da nossa Natureza florescente
uma página verde ali se via ! ...
E eu lembrei-me de ti, dessa poesia
que escreves no teclado confidente,

dos encontros ouvindo os desafios,
os ais das jurutís, meigos, sombrios,
a doce patativa alviçareira,

e o meigo sabiá,, todo enlevado,
cantando "O Sertanejo Enamorado"
nas franças proeminentes da mangueira.

Catullo da Paixão Cearense
1863-1946
brasileiro

MADEIRA

Madeira

Aqui, tudo me enternece e me fascina:
A natureza estuante, a palpitar !
O panorama que se descortina !
A cidade ajoelhada ao pé do altar !

Como foi generosa a mão divina !
E com que magnitude soube dar !
O azul cobalto inunda-me a retina !
Azul é o céu ! o ar ! a luz ! o mar !

O próprio verde azula-se a distancia !...
Visto de azul também a minha ânsia ...
Adormecida no ar há uma ternura ...

Num bailado se exibe a luz mais pura ...
Ante sublime festa para o olhar ,
Eu quebro a pena ... já não sei cantar ...

Lisette Villar de Lucena Tacla

sábado, maio 13, 2006

EU SINTO....

Eu sinto que nasci para o pecado,
se é pecado, na Terra, amar o Amor;
anseios me atravessam, lado a lado,
numa ternura que não posso expor.

Filha de um louco amor desventurado,
trago nas veias lírico fervor,
e, se meus dias a abstinência hei dado,
amei como ninguém pode supor.

Fiz do silêncio meu constante brado,
e ao que quero costumo sempre opor
o que devo, no rumo que hei traçado.

Será maior meu goso ou minha dor,
ante a alegria de não ter pecado
e a mágoa da renuncia deste amor?!...


Gilka da Costa Mello Machado
1893-1980
(brasileira )

sexta-feira, maio 12, 2006

OUTRO MAR

Outro mar...

Deram-me por desterro a larga pradaria,
onde floreja o amor, e onde palpita o gozo;
e, ao lado do prazer, do fausto e da alegria,
achei-me triste e só, Tântalo desditoso.

Corri o continente, a ver se encontraria
região, em que eu não visse alheio amor ditoso;
cheguei à beira mar, mas... __ pérfida ironia !
o mar beijava a rocha, ébrio, febril, nervoso.

Ergui a vista ao alto; e, no docel flamante,
que abrigava do mar o tálamo gigante,
a viraçaõ tecia os cantos nupciais...

Senti fugir-me a vista; andei um passo avante;
era o pontal da rocha ! e, como a Safo amante,
afundei-me no mar dos loucos ideais.

Candido de Figueiredo

AS PESSOAS SENSÍVEIS

As pessoas sensíveis

As pessoas sensíveis não são capazes
De matar galinhas
Porém são capazes
De comer galinhas

O dinheiro cheira a pobre e cheira
À roupa do seu corpo
Aquela roupa
Que depois da chuva secou sobre o corpo
Porque não tinham outra
Porque cheira a pobre e cheira
A roupa
Que depois de suor não foi lavada
Porque não tinham outra

"Ganharás o pão com o suor do teu rosto"
Assim nos foi imposto
E não:
"Com o suor dos outros ganharás o pão"
Ó vendilhões do templo
Ó construtores
Das grandes estátuas balofas e pesadas
Ó cheios de devoção e de proveito

Perdoai-lhes Senhor
Porque eles sabem o que fazem


Sophia de Mello Breyner Andresen

EU SEI ...


Eu sei que p'ra viver em bem, preciso
Do teu amor que embriaga e alenta;
Dá-me, pois, minha q'rida aquele sorriso,
Em que minh'alma doida se acalenta.

Tu sabes que é preciso ao meu viver
Um beijo teu, sonoro e cristalino,
Mas tens gosto em me ver assim sofrer
Sorrindo com desdém do meu destino.

E é este amor tecido em tristes ais
Que sorrindo, ou cantando, sempre vais
Galhofando dos tristes rogos meus.

Diz, se dei para rires desta dor
Um motivo de ofensa ao teu amor,
Que perdão pedirei à Mãe de Deus
.

(Anónimo)

HOMENAGEM...

Homenagem a Ricardo Reis

Não creias, Lídia, que nenhum Estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.

Cada dia é dado uma só vez
e no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde.
o tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
que o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
do que o teu próprio passo

Sophia de M. B. Andresen

quinta-feira, maio 11, 2006

SONETO DE INÊS

Soneto de Inês

Dos olhos corre a água do Mondego
os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego
amor que torna os homens imortais.
Inês Inês! Distância a que não chego
morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes os teus braços
são gaivotas poisadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhs baços
Inês! Inês! Inês de Portugal.

Ary dos Santos

quarta-feira, maio 10, 2006

UMA LÁGRIMA...

Uma lágrima triste, bela e cristalina
Chorava pelo noivo a quem amava tanto!
Havia-lhe morrido e, por isso, o pranto
Lhe ia queimando a face e toldando a retina...

Parecia tranquila e calma e, no entanto,
Ia perdendo a cor mimosa e purpurina
Do rosto angelical e de perfeição divina
A quem a dor tirava a formosura e o encanto .

Uma lágrima mais a sua dor mitiga
Num ligeiro momento mas cruel fadiga
Em breve a existencia lhe virá roubar...

....................................................................
Já nos seus olhos lindos o pranto secou...
Perderam luz e brilho e a pobre ficou
Cega por toda a vida, de tanto chorar...


(Anónimo)

terça-feira, maio 09, 2006

CHÃO DE AMOR

Chão de Amor

O chão que alegre nós pisamos foi maninho.
Nele crescia o tojo, a silva. a ortiga.
Hoje dá pão, azeite e vinho
e, da secura nasce, um veio d'agua amiga.

Pensando nessa que é mais fresca do que o linho
o chão cultivo sem sentir fadiga.
E logo, enquanto espero a ceia, alinho
um jardim novo à doce rapariga.

Naquele chão de aromas, Chão de Amor
tudo o carinho fez... desde o valado
de terrão verde, ao muro e casa de alicerce.

Mas a mais linda e deliciosa flor
que eu vi crescer ansioso e deslumbrado
Ah foste Tu __ meu sumarento alperce.

António Vieira Lisboa

segunda-feira, maio 08, 2006

URGENTEMENTE

Urgentemente

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
Multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer
.

Eugénio de Andrade

SONHEI UM......

Sonhei um belo sonho de grandeza;
De grandeza, por sonhar que amava
A mais linda e formosa portuguesa
Que meu pensar ideou quando sonhava.

Olhando à sua estirpe e gran riqueza.__
Vi no meu sonho que me desprezava.
Oh ! Que dor, que tortura e que tristeza,
Durante aquele sonho em mim morava !

Tudo foi ilusão, doce mentira,
Que só na mocidade se delira __
Em sonhos que dão alma, que dão vida.

Acordei ! Vi meu sonho assim desfeito;
Tombei triste a cabeça sobre o peito,
Com a face pálida amortecida.


(Anónimo)

domingo, maio 07, 2006

A SULAMITA

A Sulamita

_-?Quem anda lá fora, pela vinha,
na sombra do luar meio encoberto,
subtil nos passos e espreitando incerto,
com brando respirar de criancinha?

Um sonho me acordou. Não sei que tinha...
pareceu-me senti-lo aqui tão perto...
sua alta noite, seja num deserto,
quem ama até em sonhos adivinha...

Moças da minha terra, ao meu amado
correi, dizei-lhe que eu dormia agora,
mas que pode ir contente e descansado;

pois se tão cedo adormeci, conforme
é meu costume, olhai, dormia embora,
porque o meu coração é que não dorme...


Antero de Quental

sábado, maio 06, 2006

O INFINITO

O Infinito

Aonde o corpo não vai __ projecta-se o olhar;
Onde pára o olhar _- prossegue o pensamento;
Assim, n'esse constante, eterno caminhar,
Ascendemos do pó, momento por momento.

Muito além da atmosfera e além do firmamento
Onde os astros, os sóis, não cessam de girar,
Há de certo mais vida e muito mais alento
Do que nesta prisão mefitíca, sem ar...

Pois bem ! se não me é dado, em vigoroso adejo,
Subir, subir... subir __ aos mundos, que não vejo,
Porém que um não sei quê me diz que inda hei-de vir,

__ Quero despedaçar os elos da matéria:
Perder-me pelo azul da vastidão etérea...
E ser o que só é quem já deixou de ser !

Mucio Teixeira
(brasileiro)

sexta-feira, maio 05, 2006

A FOLHA DO SALGUEIRO

A folha do salgueiro

Adoro esta mulher moça e formosa
Que à janela, a sonhar, vejo esquecida,
Não por ter uma casa sumptuosa
Junto ao rio Amarelo construída...
_ Amo-a porque uma folha melindrosa
Deixou cair nas águas distraída.

Tambem adoro a brisa do Levante
Não por trazer a essência virginal
Do pessegueiro que floriu distante,
No pendor da Montanha Oriental...
_ Amo-a porque impeliu a folha errante
Ao meu batel no lago de cristal.

E adoro a folha, não por ter lembrado
A nova primavera que rompeu,
Mas por causa de um nome idolatrado
Que essa jovem mulher n'ela escreveu
Com a doirada agulha do bordado...
E esse nome... era o meu ! _

(Do «Cancioneiro Chinês», de
António Feijó.)

quinta-feira, maio 04, 2006

O NOSSO AMOR

O NOSSO AMOR

O nosso amor nasceu tão simplesmente,
Como da noite escura nasce o dia,
Como depois de um beijo uma alegria,
Como nasce no campo uma semente.

Nasceu do teu olhar, e, de repente,
Minha vida, ora agreste, ora sombria,
Sentiu que, meio morta, renascia
E senti-me feliz como a outra gente.

E só porque me viste e me sorriste
Eu deixei de viver sozinho e triste,
Como tudo entre nós foi natural !

Mas o que francamente não supus
Foi que uns olhos pudessem dar mais luz
Que todo o Sol que brilha em Portugal.

José Coelho da Cunha
(do livro «Cancioneiro de amor»)

O MEU AMOR

O MEU AMOR

Todos perguntam pelo meu amor
(Ia a escrever «o nosso amor», perdoa)
Quem és ignoram, mas a minha dor,
Encontrou eco em toda a alma boa.

Se os lestes, os versos, que tu leste à toa,
Alguns que os leram, sabem-nos de cor,
E, na voz d'eles, Deus m'os abençoa,
P'lo sofrimento, que me fez melhor.

Fugindo de te ver, ao meu caminho
Vem sempre agora alguem p'ra me lembrar
O que dentro de mim chora baixinho.

Procurei no trabalho o esquecimento;
Mas, se mato o meu tempo a trabalhar
Não consigo matar o sofrimento.

Fausto Guedes Teixeira

quarta-feira, maio 03, 2006

QUEM POLUIU...

Quem poluiu...

Quem poluiu, quem rasgou os meus lençóis de linho,
onde esperei morrer, __ meus tão castos lençóis ?
Do meu jardim exíguo os altos girassóis
quem foi que os arrancou e lançou no caminho ?

Quem quebrou (que furor cruel e simiesco ! )
a mesa de eu cear __ tábua tosca de pinho ?
E me espalhou a lenha ? E me entornou o vinho ?
__ da minha vida o vinho acidulado e fresco...

Ó minha pobre mãe !... Não te ergas mais da cova.
Olha a noite, olha o vento. Em ruína a casa nova...
Dos meus ossos o lume a extinguir-se breve.

Não venhas mais ao lar. Não vagabundes mais.
Alma da minha mãe... Não andes mais à neve,
de noite a mendigar às portas dos casais.

Camilo Pessanha
(1867-1926)

terça-feira, maio 02, 2006

AO CAVALO DO CONDE DE SABUGAL

Ao cavalo do Conde de Sabugal

Galhardo bruto, teu bizarro alento
Musica é nova com que aos olhos cantas,
Pois na harmonia de cadencias tantas
É clave o freio, é solfa o movimento.

Ao compasso da rédea, ao instrumento
Do chão que tocas, quando a vista encantas,
Já baixas grave, e agudo já levantas,
Onde o pisar é som e o andar concento.

Cantam teus pés, e teu meneio pronto,
Nas fugas, não nas clausulas medido,
Mil consonancias forma em cada ponto.

Pois em solfas airosas suspendido,
Ergues em cada quadro um contraponto,
Fazes em cada passo um sustenido.

Autor anónimo

PARA TI {DE PROPÓSITO}

Para ti [De propósito]

Por sonetos me apaixono
Cada vez que aqui venho
Arredo p'ra longe o sono
Deslumbro-me com o engenho.

Enquanto aqui fores dono,
"De propósito" com empenho
Não olvidará o patrono
E manterá seu desenho.

Aos ventos da inspiração
Sei que as estrelas sorriam
Com o brilho da canção.

Ness'arte cantam a beleza
Os versos luz irradiam:
É amor! Tenho certeza!

"AZORIANA"

segunda-feira, maio 01, 2006

E DAS AGUAS SALGADAS...

................

E das águas salgadas se fez sal
Em talhos a mulher moura criou
Ventos de verão quente do sapal
Salina à lama terra lhe chamou.

Os bagos brancos do sal da terra 'scura
Lamas tempos e homens a salmouraram
Caldeiras da fornalha vida dura
Suores a herança alimentaram.

Águas bentas e sal os baptizaram
Na salmoura da vida cal da morte
Tristes rictus as lágrimas secaram.

Salina da saudade do valor
Homens do corpo são alma forte
Que a fé não se finda ao temor.

António Rei

ESTA PALAVRA SAUDADE

Esta palavra saudade

Junto de um catre vil, grosseiro e feio,
por uma noite de luar saudoso,
Camões, pendida a fronte sobre o seio,
cisma, embebido num pesar lutuoso...

Eis que na rua um cantico amoroso
subitâneo se ouviu da noite em meio:
Já se abrem as adufas com receio...
Noites de amores! Que trovar mimoso!

Camões acorda e à gelosia assoma;
e aquele canto, como um antigo aroma,
ressuscita-lhe os risos do passado.

Viu-se moço e feliz, e ah! nesse instante,
no azul viu perpassar, claro e distante,
de Natércia gentil o vulto amado...

Gonçalves Crespo
(1846-1883)