terça-feira, outubro 28, 2014

TROVAS

Morena, teus olhos belos
Fazem-me a alma sombria:
Quero-te tanto, Morena,
Como ao pão de cada dia!

Se ouvires dobrar os sinos,
Não perguntes quem morreu;
Ausente de ti, Morena,
Ninguém morre senão eu!


               António Botto

segunda-feira, outubro 20, 2014

CANTIGA

Deixa-te estar na minha vida
Como um navio sobre o mar.

Se o vento sopra e rasga as velas
E a noite é gélida e comprida
E a voz ecoa das procelas,
Deixa-te estar na minha vida.

Se erguem as ondas mãos de espuma
Aos céus, em cólera incontida,
E o ar se tolda e cresce a bruma,
Deixa-te estar na minha vida.

À praia, um dia, erma e esquecida,
Hei, com amor, de te levar.
Deixa-te estar na minha vida.
Como um navio sobre o mar.


João Cabral do Nascimento
         1887-1978

 https://www.youtube.com/watch?v=SLiuvoA2gGM

quinta-feira, outubro 16, 2014

XÍCARA conjunto musical

                    A M O R

Amor é um arder que se não sente;
É ferida que dói, e não tem cura;
É febre, que no peito faz secura;
É mal, que as forças tira de repente.

É fogo, que consome ocultamente;
É dor, que mortifica a Criatura;
É ânsia, a mais cruel e a mais impura;
É frágoa, que devora o fogo ardente.

É um triste penar entre lamentos;
É um não acabar sempre penando;
É um andar metido em mil tormentos.

É suspiros lançar de quando em quando;
É quem me causa eternos sentimentos.
É quem me mata e vida me está dando.


                Abade de Jazente
                    1719-1789  

quarta-feira, outubro 15, 2014

LEONOR

A Leonor continua descalça,
o que sempre lhe deu certa graça.

Pelo menos não cheira a chulé
e tem nuvem de pó sobre ò pé.

Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor

Um filhito ranhoso na mão,
uma ideia já podre no pão.

Meia dúzia de sonhos partidos,
a seus pés, como cacos de vidros.

Digam lá se as madames do Alvor
são tão lindas como esta Leonor.
      
         António Magalhães Cabral 
                 1931-2007
     
 

domingo, outubro 12, 2014

DESENCANTADA

Não quero ver-te mais. De que servia ?
Bem sabes que na vida nada dura.
Se vivemos uma hora de alegria,
Temos depois imensas de amargura.
     
Como às vezes, após um lindo dia,
Segue a noite, tenebrosa, escura,
Atrás dum grande Bem que nos sorria
Vem quase sempre a dor, a desventura.
     
Eu sei que o teu amor há-de acabar,
Que as flores que me deste hão de murchar ...
A vida é toda um sonho, uma ilusão !...
     
Nada resiste ao tempo. E, na verdade,
A maior, a melhor felicidade
É sempre aquela que se espera em vão.
     
                               Maria de Melo


quinta-feira, outubro 09, 2014

DISPO

Cerco e troco
escrevo e ponho.
     
Levanto a saia e o subido
mostra a bainha do corpo
descubro o nu, no vestido.
     
Perpasso as mãos
nas penumbras
desacato o que é restrito.
     
Disponho do proibido
permito        dispo
desdigo.
     
Caminho pelo prazer
que sempre afirmo
e prossigo.
      
      Maria Teresa Horta  

quarta-feira, outubro 08, 2014

CONFIANÇA

Canta e procura dar à voz honesta
Uma força de pena ou de alegria.
Espera. Crê. Resigna-te. Confia.
Deixa de ver na vida a dor funesta.
    
Ama quem te quer mal, quem te detesta,
E,  no abandono duma tarde fria,
Goza a volúpia estranha da agonia.
Duma rubra agonia cor de festa.
    
Empresta ao teu destino incerto e vago
O ritmo quieto dum mansinho lago,
Onde se espelha a paz e a esperança.
    
Pensa que Deus criou para teu gôsto,
O sol, o fogo, o mar, um sonho, um rosto,
Algum riso inocente de criança.
    
           Maria Antónia Teixeira (filha)

domingo, outubro 05, 2014

MINHAS ASAS DE CONDOR

'A ESQUINA DA VIDA'

MINHAS ASAS DE CONDOR


Minhas asas de condor
tinham sol no coração
de um suspiro de uma flor
eu compunha uma canção

Cada beijo imaginado
meigo gesto, brando olhar
era poema bordado
de branca espuma do mar

Poentes de fogo amava
e em sonhos, cada mulher
era um anjo que eu cantava
que eu amava sem saber

Desilusões que sofri !
Dos anjos que resta agora ?
Sós os versos que escrevi
e não soube deitar fora

Agora versos não faço
chegam mais longe os meus passos
quem pode abrir o espaço
não deixa amarrar os braços

Um poema é todo o dia
desde que eu te conheci
e algum poema diria
tudo o que sinto por ti ?

Não, versos não faço mais
pus neles ponto final
p'ra quê buscar ideais
se és tu o meu ideal ?

Quando juntinho sonhamos
e nos beijamos... depois
que outra coisa precisamos
se o Mundo somos nós dois ?

Não há versos nem desejos
no sol da nossa alegria
Os poemas? são teus beijos
Nossos abraços __ poesia

Perdoai pois meu amor
se o poeta adormeceu,
há lá poema maior
que a filha que Deus nos deu?

.
Zacarias Mamede

quarta-feira, outubro 01, 2014

ARMA SECRETA

Tenho uma arma secreta
ao serviço das nações.
Não tem carga nem espoleta
mas dispara em linha recta
mais longe que os foguetões.

Não é Júpiter, nem Thor,
nem Snark ou outros que tais.
É coisa muito melhor
que todo o vasto teor
dos Cabos Canaverais.

A potência destinada
às rotações da turbina
não vem da nafta queimada,
nem é de água-oxigenada
nem de ergóis de furalina.

Erecta, na torre erguida,
em alerta permanente,
espera o sinal da partida.
Podia chamar-se VIDA.
Chama-se AMOR, simplesmente.

                 António Gedeão