sábado, julho 24, 2010

Ó TOCADORA DE HARPA

Ó tocadora de harpa, se eu beijasse
Teu gesto, sem beijar as tuas mãos!
E, beijando-o, descesse p'los desvãos
Do sonho, até que enfim o encontrasse,

Tornado Puro Gesto, gesto-face
Da medalha sinistra _ reis cristãos
Ajoelhando, inimigos e irmãos,
Quando processional o andor passasse!...

Teu gesto que arrepanha e se extasia...
O teu gesto completo, a lua fria
Subindo, e em baixo, negros, os juncais...

Caverna em estalactites o teu gesto...
Não poder eu prendê-lo, fazer mais
Quero vê-lo e perdê-lo!... E o sonho é o resto.

Fernando Pessoa

quinta-feira, julho 01, 2010

NATUREZA-MORTA

ACABEI de apagar o meu cigarro,
E abandonei um livro _ tudo, em suma:
Até a velha xícara de barro,
Vazia de meu chá, que já não fuma...

Agora cismo... Espírito bizarro,
Forço o silêncio em que o meu ser se esfuma,
Mas, neste ambiente amolecido e charro,
Vou perdendo as idéias uma a uma...

No entanto, cismo. Embora cada vez
Mais vazio, mais oco (e, assim, talvez
Mais puro e bom...), quero ir até ao fim!

_Inquietações de espírito vadio,
Porque eu sucumbo e sinto o desafio
Da natureza-morta que há em mim!...

Alberto Jerónimo