quinta-feira, setembro 25, 2014

SONETO

Fere igualmente Amor o rico, e o pobre,
o moço, o velho, em fim tudo sujeita;
e, às vezes onde menos se suspeita,
arde mais vivo quanto mais se encobre.

Faz que um herói ao seu poder se dobre,
que desvarie um sábio; e não respeita
nem da cabana a esfera mais estreita,
nem do palácio o resplendor mais nobre.

Nem dentro dos grilhões de uma clausura
contra os tiros cruéis do aventureiro,
encontra fraco abrigo a formosura.

Rompe pelo impossível derradeiro;
combate as honras, a virtude apura;
e alista por vassalo o mundo inteiro.
 

     
Sanches de Frias

terça-feira, setembro 23, 2014

SÓ PARA TI

Eu fui uma ilusão que tu criaste
e um sonho vão ... aquele em que mentiste;
eu fui o casto amor que não sentiste;
um pouco dessa vida que queimaste ...
     
Eu fui alguma coisa que olvidaste;
talvez fosse o remorso a que fugiste;
eu fui Presente e sou Passado triste;
eu fui só teu e sou quem tu deixaste ...
      
Tu és p'ra mim aquilo que ficou
dum sonho, que iludido se sonhou,
sem ter dum tal sonhar o sentimento.
     
Tu és p'ra mim o céu que escureceu ...
Tu és o quente sol que se escondeu
p'ra sempre, no sol-pôr do esquecimento !
      
                    Armando Soares Imaginário

segunda-feira, setembro 22, 2014

FOLHAS CAÍDAS (Outono)

Outono de nostálgica saudade...
A tarde vai morrendo lentamente
nos braços sensuais do sol poente,
num facho de pujante claridade.

Meu Outono romântico, ansiedade
das almas a voar eternamente
na fantasia louca do presente,
numa falsa visão da realidade!

Minhas crenças num sopro desfolhaste,
como as folhas dos ramos sacudidas,
que ao passar desabrido, assim levaste.

Uma só me ficou, de alto valor,
mais firme do que as outras desprendidas:
a crença, minha Mãe, no teu amor!


Georgina Cardoso dos Santos

domingo, setembro 21, 2014

PEDRO TAMEN

Tendo chegado ao fim da rua, vês de longe
que o princípio da rua não existe. O que tu vês
não é calçada ou casa, sequer esquina,
o que tu vês não é alegre ou triste,
o que tu vês arrasa os próprios olhos
porque os vês vazios.
     
E apenas há quem julgue que chegaste
porque pesas um peso que soltaste
pelo caminho por onde nunca andaste.
    
             Pedro Tamen

quinta-feira, setembro 18, 2014

NÃO IMPORTA SABER

foi o sol na brancura do teu rosto ?
foi o vento do sul nos teus cabelos ?
    
foi o rebanho dos meus dedos frios
perdido entre as dunas do teu peito ?
    
apenas isso ou, vagarosa, a mão
subindo na desordem dos joelhos ?
    
foi outra vez a chuva no verão ?
foi, no lugar da mão, a tua boca ?
    
                     Miguel de Castro

terça-feira, setembro 16, 2014

A PORTA FECHADA

Ninguém me convidou. Errei o meu caminho.
Agora que não sei regressar donde vim
deixo-me estar à espera a escutar sozinho
a música de um amor que não é para mim.
    
Estou aqui por engano, alguém vai descobrir
o embuste grosseiro que me serve de lar.
Estou à espera de quê?  Talvez seja o primeiro
a perder um caminho que não tinha lugar.
    
As palavras são outras, foi trocada a viagem.
Conheci a pobreza e paguei com poesia.
Mas alguém perguntou e eu não tinha passagem:
clandestino fiquei nesta sala vazia.
   
Ninguém me convidou. Errei o meu caminho.
Agora que não sei regressar donde vim
a música das esferas faz-me cantar sozinho
e este amor que não sei fez-se sombra de mim.
 
Luís Filipe Castro Mendes

sábado, setembro 13, 2014

ESCOPO

A verdadeira roupa
__não a que foi
emprestada ao acaso
do tempo.
    
A verdadeira fala
__não a que aprendi
a revelar-me sempre
pelo avesso.
    
O verdadeiro ser
__esse que guardo
e nutro de pranto
e assombros.
    
A verdadeira casa
__não a de ontem
a minha, habitada
de escombros.
     
          Lara de Lemos

terça-feira, setembro 09, 2014

BEM OU MAL

O bem seria escrever
com letras alvas.
Tão claro o tempo passa,
longe, nas aléias do jardim !
     
O bem seria deixar, nas rosas,
enferrujar um esplendor de sangue
ou, na oitava luz da lua,
erguer da face o véu escuro.
    
E o mal ?  _São as pedras,
soltas no caminho, brutas feras,
vigiando em silêncio, vigiando,
se a brisa segue e eu fico
    
sob este céu imenso, sózinha.
    
                  Deborah  Brennand

sábado, setembro 06, 2014

RETRATO DE UM AMOR ANTIGO COM UM VERSO DE POUND

Deixei o teu retrato na distância
que fizémos crescer de mim a ti,
As vezes, mais ainda que a ausência,
deserto coração do que vivi.
     
me pesam as palavras que não disse,
os gestos suspendidos na memória
como palco de sombras que se abrisse
para mostrar o que não teve história.
    
E ao fundo do retrato mais antigo
o rosto que teremos nós um dia
defronta-nos irónico, num riso
a chamar-nos da morte para a vida.
    
(Até se ouvir no meio do embaraço:
Tua mente e tu sois nosso mar Sargaço)
    
      Luís Filipe Castro Mendes

segunda-feira, setembro 01, 2014

APOLOGIA DO LOBO

Nas montanhas soturnas e bravias,
Cobertas de urzes e giestas amarelas,
Vê-se às vezes, nas longas noites frias,
Um lobo a uivar, voltado p'ra as estrelas.
     Os seus olhos nervosos, refulgentes,
     A cintilarem como dois luzeiros,
     Têm o fulgor da fronte dos videntes,
     A ostentaçãp heróica dos guerreiros:
 Pois pode acaso alguém ao lobo negar
As aptidões de um pensador profundo ?
Quem sabe! Enquanto ao longe anda a ulular,
Estuda as obras de Proudhon a fundo.
     A Natureza educa. O Sol radiante,
     A árvore verde, graça e luz da aldeia,
     O azul celeste, a nuvem flutuante,
     Tudo contém em si uma epopeia.
O lobo talvez seja um grande artista,
Original espírito do bem,
Filósofo, talvez positivista
E que jamais se revelasse a alguém.
     Quando através dos densos arvoredos
     Eu o encontro, nas noites consteladas,
     Ou entre as altas cristas dos rochedos
     Erguidas para os ares como espadas.
Digo sempre comigo então: _Oh sábios,
Não injurieis o lobo, não fujais !
Que vai cair em breve dos seus lábios
O melhor dos sistemas sociais.
    
          José Leite de Vasconcelos
                      (1858-1941)