quarta-feira, junho 28, 2006

AS FONTES


As fontes

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
Á agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes.

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor.

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Sophia de Mello Breyner Andresen

terça-feira, junho 27, 2006

TRISTE


Triste, bem triste, vim a este mundo, _
Sem conhecer meu pai, ou minha mãe.
Sem carinhos que toda a gente tem _
Me criei como um pária, um vagabundo.

Baldões da sorte, são como ninguem
Conhecidos por mim e muito a fundo,
Pontapés duns ou doutros os confundo
Como o pão santo que da esmola vem. _

Foi num palácio, ou numa choupana
Que vi a luz que o astro rei dimana _
Pela primeira vez? Não sei dizer!

Talvez que num albergue , abandonado,
De vergonha, de lama salpicado,
Começasse meu fado a percorrer.

Anónimo

segunda-feira, junho 26, 2006

ESTRADAS DO PENSAMENTO


Estradas do Pensamento
.
Imerso num mar de idéias, em silêncio
No escuro do quarto, não consigo dormir
Ouço ao longe o som d'uma estrada, o movimento
O zumbido, rugido de veículos num ir e vir
.
Cerrando os olhos, submergindo em mim, tento
Deslocar-me ao tempo que vivi a sorrir
Reactivar lugares e gentes, um momento
de felicidade , de vida, de sentir
.
A vida é sim uma via em sentido único
Ficam-nos nos olhos as lágrimas, o desejo
De se nunca chegar ao fim da viagem
.
Viver é um passar, seguir um certo rumo
Com os nossos sentidos, nossa alma mesmo--
Cada dia vivido, parte da paisagem
Silvério Gabriel de Melo
Vogelbach-Alemanha
Nota: Este poema foi publicado com a idéia que o autor seria outra pessoa. O meu pedido de desculpas à pessoa que foi mencionada como autor. Posteriormente, e, após pesquisa na NET cheguei à conclusão que o autor é o nome supra mencionado.

domingo, junho 25, 2006

DIZEM



Dizem pouco aprender, se muito dorme
Qualquer ente da terra apetecida...
Quem, porém, ao trabalho é mais conforme,__
Mais precisa descansar da sua lida.

Quem ama vive, diz um sonhador,
E que morrer de amor é mais viver!...
Mas eu prefiro a vida sem amor__
À morte com amor e seu sofrer.

Quem acompanha o mau, pior será,
Tenho ouvido dizer, mas eu descreio...
Boa pessoa, não se torna má,
E quem é lindo poderá ser feio
.

Anónimo

quinta-feira, junho 22, 2006

PORQUÊ ?...

Porquê?...

Minha alma adornei de fantasia,
Enfeiteia de sonhos e de quimeras,
Do perfuma das belas primaveras
Quando o campo de rosas se vestia.

Continhuando no sonho não sentia
que tantas ilusões foram dispersas...
De quantas esperanças submersas,
Na dor que em meu peito escondia.

Porquê? e para quê, q'rer disfarçar
Se a máscara cai, logo o nosso olhar
Reflete nele a mágoa e a saudade.

Desse sonho que a alma iluminou,
E dessa luz tão bela que o guiou
E aos poucos foi perdendo a claridade.

Ludovina de Moura Gonçalves
Correio do Ribatejo, pag. 7 _ 4-2-2005

terça-feira, junho 20, 2006

SAUDADES DA MINHA TERRA


Saudades da minha terra

Minha Terra natal, qu'rida e saudosa aldeia,
Presépio sempre em flor, tão longe e tão presente!
Passeio-te de dia, à neve e ao sol ardente;
Passeio-te de noite, à luz da lua cheia.

À clara luz do dia, como se recreia
Minh'alma que moldaste; e que feliz se sente,
Compartilhando amor com toda essa gente,
Assim tão boa e sã, que nos comove e enleia!

Passeio-te de noite, àquela hora morta
Em que pode haver cocas atrás duma porta,
Lobisomens e bruxas nas encruzilhadas;

Ou mais cedo um pouquinho, quando os serandeiros
Dão a cheirar, à roda, em aidos e quinteiros,
Maçãs e mangericos, pelas desfolhadas.

Reinaldo Matos

sexta-feira, junho 16, 2006

QUATRO ESTAÇÕES

Quatro estações

Eu já fui primavera alegre e rescendente;
Em quimeras flori; vibrei hinos de amor;
Veio o estio depois, fecundo mas candente,
E o meu jardim então ficou sem uma flor.

Mas persistiu em mim aquela fonte oculta
Que mantém o frescor das verdes primaveras;
E, quando veio o outono, em ambição estulta
Quis de novo florir em sonhos e quimeras.

Triste ilusão porém! Insensato desejo!
Desse lindo jardim agora nada vejo,
Embora inda respire o seu perfume terno.

Hoje é tudo aridez; a própria luz é escassa;
Tomba neve do céu e o vento ruge e passa.
Tão cedo envelheci! Tão cedo veio o inverno!

Alberto de Aragão

quarta-feira, junho 14, 2006

AO ETERNO X


Lavre lá dois tentos, seu eterno X
Que estes versos são bons, têm cabeça
O lobo do moinho que agradeça
A quem, assim cantando, é tão feliz!

O lobo ouviu, decerto, e encantado diz,
Embora disparate lhe pareça,
Que pena que se vá, desapareça,
O poeta que tanto assim me quis.

Volta outra vez, poeta, volta mais,
Nestas manhãs divinas, ideais,
D'onde irradia pura a paz de Deus.

Que as paredes da casa onde escreveste
Requerem mais poemas como este
Querem mais versos bons, como estes teus.

Pontével, Agosto de 1929
Correio do Ribatejo pag. 6 , 19-01-2001

Nota: Estes versos foram a resposta a uns publicados no fontanário de Pontével, que se intitulavam 'O LOBO MAU' , assinados pelo 'ETERNO X' , e já publicados n'esta despretensiosa página.

terça-feira, junho 13, 2006

JUNHO (mês de S. João)


Junho chegou risonho: nos caminhos
Anda um festim de luz e de noivado
Desabrocha uma flor em cada lado
E, em cada ramo se balouçam ninhos.

Asas ao vento, hilares, os passarinhos
Dulces, em acordes de trinado,
Vão , pelo azul do céu eterizado
Unifeitos de risos e carinhos.

Em barcarola, pela flor dos lagos
Todas mimosas, lépidas, voando
Sandas gaivotas, em gentis afagos.

Anda a alegria com o prazer de braço,
E o sol as brumas matinais rasgando
Surge risonho matizando o espaço.

Anónimo

domingo, junho 11, 2006

CANTICO FORMOSO


Ah! Beija-me com beijos de um amor profundo:
Sinfonia de beijos cada vez mais quentes,
Bem mais precioso do que tudo o que há no mundo,
Do que tudo o que foi ou possa ser criado;

Beijos da tua boca, meu jardim pujante,
Florido, em Primavera, fresco, perfumado!
Sim! Beija-me com beijos de um amor constante:
Sinfonia de beijos cada vez mais quentes!

Farol da minha nau p'las vagas sacudida
Por entre mil escolhos de um mar tenebroso;
Bússola minha; minha estrela rutilante...__

Beija-me, sim, com beijos de um amor formoso:
Sinfonia de beijos cada vez mais quentes!
Tu és a minha luz: o sol da minha vida!

Amílcar Amaral

sexta-feira, junho 09, 2006

TURBAÇÃO


TURBAÇÃO

Tentar dizer o que sente
O meu pobre coração,
E calar eternamente
Nesta estranha turbação.

Ir responder ao ardente
Olhar teu, minha paixão,
E quedar assim, temente...
Os olhos fitos no chão...

O teu sentimento, di-lo;
O meu não queiras saber.
Ao amor, basta senti-lo.

Quase sempre, podes crer,
Só dizemos bem aquilo
Que nos fica por dizer.


Maria Antonieta Faustino Fernandes
Correio do Ribatejo pag. 24 14/02/1997

quarta-feira, junho 07, 2006

O NÃO TER TEMPO


O NÃO TER TEMPO

Deus me pede do tempo estreita conta!
É preciso dar conta a Deus do tempo;
mas, quem gastou, sem conta, tanto tempo,
Como dará sem tempo tanta conta?

Para fazer a tempo a minha conta,
dado me foi, por conta, muito tempo:
mas não cuidei na conta e foi-se o tempo...
Eis-me agora sem tempo, eis-me sem conta!

Ó vós que tendes tempo sem ter conta,
não o gasteis sem conta em passatempo:
cuidai, enquanto é tempo, em terdes conta.

Pois, se quem isto conta do seu tempo
houvesse feito a tempo apreço e conta,
não chorava sem conta o não ter tempo.

Anónimo

sábado, junho 03, 2006

JOSE SARAMAGO

Do Livro "Os Poemas Possíveis"

FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA

Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, á boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

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JOGO DO LENÇO

Trago no bolso do peito
Um lenço de seda fina,
Dobrado de certo jeito.
Não sei quem tanto lhe ensina
Que quanto faz é bem feito.

Acena nas despedidas,
Quando a voz já lá não chega
Por distâncias desmedidas.
Depois, no bolso aconchega
As saudades permitidas.

Também o suor salgado,
Às vezes, enxugo a medo,
Que o lenço é mal empregado.
E quando me feri um dedo,
Com ele o trouxe ligado.

Nunca mais chegava ao fim
Se as graças todas dissesse
Deste meu lenço e de mim,
Mas uma coisa acontece
De que não sei porque sim:

Quando os meus olhos molhados
Pedem auxílio do lenço,
São pedidos escusados,
E é bem por isso que penso
Que os meus olhos, se molhados,
Só se enxugam no teu lenço.

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Do Livro "Provavelmente Alegria"

ANTES CALADOS

E se os ossos rangesses quando os gritos
Dentro no sangue negro se amordaçam?
E se os olhos uivassem quando a lágrima
Grossa de sal amargo raspa a pele?
E se as unhas mudadas em navalhas
Abrissem dez caminhos de desforra?
E se os versos doessem mastigados
Entre dentes que mordem o vazio?

(Mais perguntas, amor? Antes calados.)

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Nota: O meu agradecimento muito especial a quem me cedeu estes poemas.
Por incrível que pareça, estes poemas não constam nos meus muitos livros 'desarrumados'. Até ao momento, são os únicos publicados, que não possuo.

LUÍS VAZ DE CAMÕES



Amor é um fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É um não contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É um estar preso por vontade;
É servir a quem vence o vencedor;
É um ter com quem nos mata lealdade.

Mas ?como causar pode o seu favor
Nos mortais corações conformidade,
Sendo a si tão contrário o mesmo Amor?


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Ah! Minha Dinamene! Assim deixaste
Quem nunca deixara nunca de querer-te!
Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te,
Tão asinha esta vida desprezaste!

Como já para sempre te apartaste
De quem tão longe estava de perder-te?
Puderam essas ondas defender-te
Que não visses quem tanto magoaste?

Nem falar-te, somente, a dura morte
Me deixou, que tão cedo o negro manto
Em teus olhos deitado consentiste!

Ó mar! Ó céu! Ó minha escura sorte!
Qual pena sentirei que valha tanto
Que inda tenho por pouco o viver triste!


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Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só quando amena e marchetada
Saía, dando ao mundo claridade,
Viu apartar-se d' ua outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que duns e doutros olhos derivadas,
S' acrescentaram em grande e largu rio;

Ela viu as palavras magoadas,
Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas.


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"Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que para mim bastava amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.

Errei todo o discurso dos meus anos;
Dei causa a que a fortuna castigasse
As minhas mais fundadas esperanças.

De amor não vi se não breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!"

quinta-feira, junho 01, 2006

CORRE, JÁ




«Corre, já entre serras escarpadas,
Já sobre largos campos, murmurando,
O Tieté, e as águas engrossando,
Soberbo alarga as margens levantadas.

Penedos, pontes, árvores copadas,
Quanto topa, de cólera escumando,
Com fragor espantoso vai rolando
Nos vórtices das ondas empoladas.

Mas quando mais caudal, mais orgulhoso,
As margens rompe, cai precipitado,
Atroando ao redor toda a campina.

O próprio retrato é dum poderoso,
Pois, quanto mais sublime é seu estado,
Mais estrondosa é a sua ruína».

António Dinis da Cruz e Silva
(1731-1799)

IDILIO

Idílio

Quando nós vamos ambos, de mãos dadas,
Colher nos vales lírios e boninas
E galgamos dum folêgo as colinas
Dos rocios da noite inda orvalhadas.

Ou,, vendo o mar, das ermas cumeadas,
Contemplamos as nuvens vespertinas,
Que parecem fantásticas ruínas
Ao longe, no horizonte, amontoadas:

Quantas vezes, de súbito, emudeces !
Não sei que luz no teu olhar flutua;
sinto tremer-te a mão, e empalideces...

O vento e o mar murmuram orações,
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.

Antero de Quental
1842-1891