quinta-feira, julho 23, 2015

COMPANHEIROS

Eu tenho um livro velho, amarelado,
Que sabe quase toda a minha vida;
Vibrou comigo em sonho enamorado,
Sofreu comigo a chaga dolorida.
    
Relendo as folhas mortas, com cuidado,
Compondo a velha história já sentida,
Eu sinto o coração alvoraçado,
Sofrer a mesma angústia revivida.
    
Mas o livro amarelado, antigo,
Está já tão velhinho, o meu amigo,
Que já não quer gravar meus dissabores;
    
E viu-me tantas lágrimas perdidas,
Fi-lo seguir comigo tantas vidas
Que ele também cansou de tantas dores.
      
            Hermes Ferreira

quarta-feira, julho 15, 2015

PREÂMBULO

Galopam cavalos
por dentro do sangue
     
Em dunas resvalam
a boca e as mãos
     
Crisparam-se as pálperas
Os dedos se inflamam
    
ao mais leve toque
na tua garganta
     
assim que de costas
te deito na cama
     
   David Mourão Ferreira

quinta-feira, julho 09, 2015

ESPUMA

Nas horas más em que a tristeza pesa,
fecho os olhos e sonho um mar todo d'espuma,
não há musica igual à voz em que ela reza
em pétalas de choro a cair uma a uma...
     
Espuma a abrir ao sol em corolas que morrem,
em jardins de mistério a soluçar na bruma,
eis o que eu queria ser! Enquanto as horas correm,
é esta a minha dor: ser como tu, espuma!
     
E sem ter uma mãe que me console e adore 
e sem ter um amor para beijar-me os olhos,
ser uma pobre flor em poeira nos escolhos...
     
E viver e morrer sem que ninguém me chore,
tendo toda a beleza e toda a alvura
a rolar numa onda cheia de doçura...
     
               António Patrício

sábado, julho 04, 2015

A CASA DO CORAÇÃO

O coração tem dois quartos:
Moram ali, sem se ver.
Num a DOR, noutro o PRAZER.
      
Quando o PRAZER no seu quarto
Acorda cheio de ardor,
No seu, adormece a DOR...
     
Cuidado, PRAZER !  Cautela,
Canta e ri mais devagar...
Não vá a DOR acordar...
      
         Antero de Quental 

quinta-feira, julho 02, 2015

AS DUAS AVES

Porque, dizem, uma ave, em a cegando,
Canta mais e melhor,
A um rouxinol os olhos foi tirando
Cacilda, sem horror.

E a voz da ave foi, depois subindo
Em sentimento... oh ! sim...
Quanto mais cego mais e vai sentindo...
Sei-o também por mim...

De Campoamor

quarta-feira, julho 01, 2015

FLOR DE ESTUFA

Em tardes mansas, pela Avenida,
onde a carruagem roda serena,
pela vidraça toda corrida,
avisto-a às vezes, tão combalida,
tão feiazinha que até faz pena.
     
Duas velhinhas, que bem suponho
quanto não mentem com seus olhares,
mostram-lhe, heroínas, um ar risonho;
mas nada, nada distrai do sonho
seus olhos dela crepusculares.
     
De amor vivendo numa atmosfera,
nas sedas moles deitada, inerme,
tristinha cisma no mal que a espera
quando ouve os beijos da primavera
dar luz ao lírio, calor ao verme.
     
Contam que um dia, vendo uma rosa,
dentro de um copo de cristal fino,
perder o lume da cor viçosa,
em tal desgosto caiu, nervosa,
que pôs a casa num desatino.
      
É que bem sabe que um dia, breve,
do frio outono que se avizinha,
num beijo, a morte, branca de neve,
há-de colhê-la, muito ao de leve,
como o abrir de asas de uma andorinha.
      
E o beijo frio, murmúrio brando,
por-lhe no rosto sossego infindo,
tanto que as velhas piedosas, quando
forem vesti-la, dirão chorando :
«Olhem, parece que se está rindo !
      
Que bem a morte meiguinha a trata,
que tão bonita faz vê-la  à gente !»
E ela, a sorrir.se, feliz e grata...
Caixão de mogno, fechos de prata, 
forros tão lindos do ninho quente !
     
Irá formosa no seu passeio
ao campo imenso do bom repouso.
Tal como os outros, do céu nos veio
o dia curto, do inverno em meio,
do sol mais baço, mais amoroso.
     
           D. João da Camara