sábado, fevereiro 28, 2009

CANÇÃO DO TEMPO PERDIDO

O tempo perdido
Não mais voltará...

Um dia
Podia ter sido...
Podia...
Mas seria...
Ou não ?...

O tempo perdido,
Relógio parado,
Só na Eternidade
Será recuperado...

Júlia do Carmo Ferreira Maury

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

JORGE DE SENA

CARTA A MEUS FILHOS
SOBRE OS FUZILAMENTOS DE GOYA

Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possivel que não seja isto, nem sequer isto
o que vos interessa para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.

Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o numero dos que pensam assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse com suma piedade e sem efusão de sangue.
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória.

Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.

Houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus.
Estes fuzilamentos, este heroísmo, este horror,
foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha
há mais de um século e que por violenta e injusta
ofendeu o coração de um pintor chamado Goya
que tinha um coração muito grande, cheio de fúria
e de amor. Mas isto nada é, meus filhos.
Apenas um episódio, um episódio breve,
nesta cadeia de que sois um elo (ou não sereis)
de ferro e de suor e sangue e algum sémen
a caminho do mundo que vos sonho.

Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais do que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa _ essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
_ mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga _
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Será ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objecto
que não fruíram,, aquele gesto
de amor, que fariam "amanhã".
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é só nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

Jorge Cândido de Sena


http://pt.wikipedia.org/wiki/Jorge_de_Sena

sexta-feira, fevereiro 20, 2009

NICOLAU TOLENTINO

A DOIS VELHOS JOGANDO O GAMÃO

«Em escura botica encantoados,
Ao som de grossa chuva que caía,
Passavam de Janeiro um triste dia
Dois gingas no gamão encarniçados.

Corra, vizinho, corra-me esses dados,
Gritava um d'eles, que nem boio via:
De sangue frio o outro lhe dizia
Mil anexins n'aquele jogo usados:

Dez vezes falha o mísero antiquário;
E ardendo em fúria o trémulo velhinho,
Atira c'uma tabola ao contrário:

O mal seguro golpe erra o caminho;
Quebra a melhor garrafa ao boticário
Que foi só quem perdeu no tal joguinho.»

Nicolau Tolentino
1740-1811

terça-feira, fevereiro 17, 2009

CLARÃO TARDIO (a Gomes Leal)

CLARÃO TARDIO

No declinar da vida, a gente reconhece,
Talvez já tarde um pouco, e com remordimento,
que tanta cousa vã, que séria nos parece,
E' pó, somente pó, erguido pelo vento.

Em duro batalhar, se cansa, se embranquece;
Consome-se a existência, expondo-a ao fogo lento
De inúteis dissensões; e, enfim, quando anoitece,
Surge o passado todo, em rápido momento.

Ouve-se, então, a voz suprema da verdade,
Que nunca se escutou, que nunca se entendeu;
E, sem remédio, vê-se, em plena claridade,

_ Das ilusões rasgado o pardacento véu, _
Como nos foi total, a estéril vanidade
De tudo, ou mal ou bem, que a vida nos encheu.

Fernandes Costa

sexta-feira, fevereiro 13, 2009

VOZ DO ALEM (a Gomes Leal)

VOZ DO ALÉM

Ao poeta GOMES LEAL

A voz da Impiedade eu, louco, ouvira,
Que, sob o falso nome de Ciência,
_Não há Deus! _me bradava; _ A Providência,
Virtude, Bem e Mal, tudo é mentira!

Mente em nós o que chamam Consciência,
E esse idela do Bem a que a alma aspira;
Que tudo, no universo, tudo gira,
A leis fatais em cega obediência.

Mas veio a Dor; ferina, encarniçou-se
Sobre mim revoltado e sem defesa,
Clamei socorro! e aquela voz calou-se!..

Outra, do Além, divinamente doce,
então, ouvi: _Meu pobre filho, reza!..
Oh! bendita ilusão! _se ilusão fosse!..

Roberto Pinto

terça-feira, fevereiro 10, 2009

Antonio Duarte GOMES LEAL

DE NOITE

Ele vinha da neve, dos trabalhos
violentos, custosos, da enxada,
cantando a meia voz, pelos atalhos.

A mulher, loura, infeliz, resignada,
cosia junto à luz. O rijo vento
batia contra a porta mal fechada.

Ao pé, havia um Cristo, um ramo bento
e uma estampa a Virgem, colorida,
cheia de mágoa, olhando o firmamento...

Uma banca de pinho, mal sustida,
vacilante aos pés: um candeeiro,
companheiros daquela negra vida.

O homem, alto, pálido, trigueiro,
entrou. Tinha as feições queimadas, duras,
dos que andam com a enxada, o dia inteiro.

A mulher abraçou-o. As linhas puras
do seu rosto contavam já tristezas
de grandes e secretas amarguras.

Tinha chorado muito as estreitezas
daquela vida assim!... Talvez sonhado
um dia com palácios e riquezas!

Ele deitou-se a um canto, fatigado
de erguer-se, alta manhã, todos os dias,
mal voavam as pombas do telhado.

Lá fora, nuvens grossas e sombrias
no pesado horizonte. Ele assim esteve
__ as noites eram ásperas e frias __.

Ela cobriu-o duma manta leve,
esburacada, velha. No telhado
ouvia-se cair, sonora, a neve.

Ela então meditou no seu passado;
no seu primeiro beijo, nas lembranças,
talvez, do seu vestido de noivado,

e nas tardes das eiras, e das danças
às estrelas, e aquela vez primeira
que a rosa lhe furtou das longas tranças;

e aquela tarde, junto da amoreira,
que trocaram as mãos; e na janela;
e quando olhavam juntos; a ribeira;

e quando era tímida e singela...
................................................................
Lá fora, dava o vento nos caixilhos;
não brilhava no céu nem uma estrela.

E, àquela hora da noite, por que trilhos
andariam no mundo __ ela cismava __
nas misérias, talvez, sem rumo, os filhos!...

Ele, na manta velha, ressonava.

Gomes Leal
(1848-1921)

http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B3nio_Gomes_Leal

sexta-feira, fevereiro 06, 2009

ESPERA-NOS

Espera-nos o tempo dividido
A ânsia da decadência rogada
Com uma amante na cama errada.

Espera-nos a certeza de nada:
A morte como tecido rasgado
Um dia a mais como se fosse dado.

Rui Dias

quinta-feira, fevereiro 05, 2009

SONETO

Agora con la aurora se levanta
mi luz, agora coge en rico ñudo
el hermoso cabello, agora el crudo
pecho ci-ne com oro, y la garganta.

Agora vuelta al cielo pura y santa
las manos y ojos bellos alza, y pudo
delerse agora de mi mal agudo ;
agora incomparable tañe y canta.

Ansí digo, y del dulce error llevado,
presente ante mis ojos la imagino,
y lleno de humildad y amor la adoro.

Mas luego vuelve en sí el engañado
ánimo, y conociendo el desatino,
la rienda suelta largamente al lloro.

Fray Luís de León