TENHO MEDO
Tenho medo de um mundo virtual,
por causa disso já perdi o meu sono.
É fim-de-século, estou no abandono.
Saber? _Ciência ou arte é tudo igual.
Medo de adormecer ao pé do trono
dum rei perdido em seu clone legal,
tão desamor, deus massa, deus sem sal,
colado em mim, da minha língua dono.
Medo que até os pontos cardeais,
de norte a sul, de leste a oeste, e mais,
percam seus distintivos e, em comum,
anunciando poder tão eloquente,
transformem o potente no impotente,
num retorno ao pastel do dia um.
Francisco Miguel de Moura
SONETO ESPIRITUAL
Q ue a matéria do efémero alimente
a paixão da beleza. Essa a aventura
do íntimo impulso à límpida corrente,
sob o influxo do tempo ainda mais pura.
No secreto domínio a luz fremente
faz-se o signo dos signos, transfigura
a visão do mistério, halo imanente
do ido e vivido. Nele é que perdura
o canto das essências, silenciado
sobre o espelho da sombra. O hoje passado
converte em esperança o claro enigma
que no idioma da noite se desfaz,
e, morte ou vida, é fim e paradigma
do agora e aqui. Talvez do nunca mais.
Waldemar Lopes
AQUI, longe
Aqui, longe do mundo, do vento
seco e frio, do mundo agreste,
teço os dias iguais, aguento
como posso a vida que me veste
de renúncia e desalento.
Aqui, bicho fechado, de esquivo
olhar e modos hesitantes
no preencher do espaço morto-vivo,
mais me disperso, ou antes
menos me concentro _ só cativo
de tédio maior que o levedado
no mundo. De nada valeu reclusões ou fugas,
fazeres de conta de enrolado bicho
no contar dos anos, cicatrizes, rugas
como se abrisse transmudado
em oiro o que aqui se acumula _ pó e lixo.
Fernando J. B. Martinho
A LIGA DA DUQUESA
A Senhora Duquesa, uma beleza antiga
De bastão de faiança e de cabelo empoado,
Certo dia, ao descer do seu estufim doirado,
Sentiu desapertar-se o fecho duma liga.
Corou, quis apertá-la (ao que o pudor obriga !)
Mas voltou-se, olhou... Tinha o capelão ao lado.
Mais um passo, e perdeu-se o laço desatado,
E rebentou na côrte uma tremenda intriga.
Fizeram-se pregões. Marqueses, condes, tudo
Procurava, roçando os calções de veludo
Por baixo dos sofás, de joelhos pelo chão...
E quando já ninguém supunha _ que surpresa !
Foi-se encontrar por fim a liga da Duquesa
No livro de orações do padre capelão.
Julio Dantas
DESNUDO
Uma muchacha se desnuda
a solas en su noche
delante del espejo.
Sobre el lecho caen ropas,
cintas, anillos, restos de frases
dichas al oído,
algunos cabellos.
Desde los hombros
una lenta luz baja
sobre los senos
con los colores de Cranach.
Queda la música secreta
de los pétalos
en la corola de su vientre.
Quedan las estrellas que nacen
junto a su lâmpara
y la Via Láctea del deseo
dando vueltas y vueltas.
Eugenio Montejo
Sobre uma litografia de OCTAVIO ARAUJO
Rochedo e pássaro: a mesma sombra parda.
O triângulo santíssimo no centro.
Um unicórnio virtual de guarda
e o fogo da Vida a queimar dentro.
Não fogo do Saber, fósforo breve
no caos, mas o magma primordial
com que o Ser a si mesmo se concebe
nas trevas aquém do Bem e do Mal.
Eva em cadeias, como a Lei ordena.
Cansado de ser deus, boceja-lhe o Ser
no ventre. Quer luz. Está pronta a cena
para, mais uma vez, Prometeu nascer.
José Paulo Paes
VENTURA
Um dia a ventura pediu-me companhia,
Ela tão meiga tão suave e doce !
Que a minha resposta foi logo q'a queria
E fomos tão felizes como se um só fosse |
A si tão chegado que até me parecia
Que do sofrimento o meu ser curou-se,
Mas esse curar-se foi até um dia
Em que me faltou, depois... Desculpou-se !
Até que cansado por tanto faltar
Um dia lhe disse pra não abalar
E ela ficou pensando pra si...
"Eu vou lhe dizer que vou só num instante
"Ali pertinho, um pouco adiante...
E desde então, esperei, e nunca mais a vi !
Eduardo Carvalho