quarta-feira, outubro 24, 2012

POEMA DOS TEXTOS

Dobrados sobre os textos
    deslizam devagar o dedo indicador
    nas brancas entrelinhas.
    A ruga entre os sobrolhos denuncia
    o concentrado esforço.
    São séculos de leitura, perseverante e atenta,
    que os lábios em silêncio reproduzem
    e as barbas com tremuras sintonizam.
    Chegado ao fim, o dedo retrocede
    e regressa ao princípio,
    de novo sublinhando o texto, cauteloso.
    Pára na dúvida, e o rosto se confrange
    no sempre nebuloso entendimento.
    Onde se lê «cordeiro» não é cordeiro;
    onde fala em «pastor» não é pastor;
    e o grão que foi cair na berma do caminho,
    pisado pelos pés e comido p´las aves,
    não era grão, nem existiam aves,
    nem os pés o pisaram, nem sequer
    o caminho existia.

    O mistério persiste, emoliente e arteiro,
    p´ra que vendo não vejam, e ouvindo não entendam.

    Que significará o pão, o vinho, o peixe, e escorpião, a cinza?

    Que significará «meus amados irmãos»?

    Que quererá dizer «amai-vos uns aos outros»?

    Antonio Gedeão

quarta-feira, outubro 17, 2012

ALGEMA DE LUXO

Este relógio de pulso
é tua algema de luxo:
a pata da hora exacta
sádica te imola e mata.

Astrid Cabral

sexta-feira, outubro 12, 2012

VERSOS À SAUDADE

Dos mares todos que há no mundo,
Qual o mais fundo,
De mais ignota imensidade?
O da Saudade:
Quem nele cai
Reaja, ou não, de lá não sai.
  
Tanta coisa faz saudade
No triste correr da Vida...
Que fará f'lecidade,
Completamente perdida?!
  
A Saudade é um tormento
Que se faz sempre lembrar,
Busco o mar do esquecimento,
Quero-me n'ele afogar.
  
Veem sempre de fugida
Esp'ranças, sonhos, delírios,
Da Mocidade e da Vida...
Deixam Saudades, Martírios...
  
Passa o amor, a paixão,
A mais antiga amizade,
que prendeu o coração...
Firmeza... só na Saudade.
  
Cruz Magalhães

sábado, outubro 06, 2012

ONZE ANOS, ÚLTIMA MORTE

Quando chegou
a décima primeira fome
os teus ombros solares
aceitaram o arco final
e a farinha parou
na saliva da memória.
O teu rosto
rendeu-se à pedra que rasteja
e só a tua alma pequenina
se move
a beber num riacho que não vemos.
A culpa foi tua
por pedires lugar à vida
dentro deste tempo.
Ó filho da ausência,
quem te disse para vires?
Se quiseres ver o teu planeta
regressa depois
quando a tua pequena boca
não for demasiada,
quando se repartirem madrugadas
e o pão que sobrar
te fizer sequer lembrar que já morreste.
 
Mia Couto